A cidade dos seguranças ou da violência do privado
Nos últimos anos a cidade do Porto mudou.
Em 2006, a dupla de artistas Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa (CC+ÂFS) fazia uma pintada no antigo Cinema Águia d’Ouro, há décadas abandonado e em ruínas. Numa noite chuvosa, armados de uma escada de vários metros e de uma lata de spray, pintaram o nome do filme “Noite na Terra” no decadente cinema, sem pedir autorização e em total impunidade. Um carro-patrulha da PSP passou, os agentes testemunharam certamente a ação, mas as ruínas não são de ninguém, são de todos. A noite era de todos.
No ano seguinte, 2007, a dupla começou a interessar-se pelo “Clérigos Shopping”, ou pelo o que restava dele. Construído no final dos anos 80, este centro comercial descoberto encontrava-se num estado de abandono total e crescente ruína. A escultura de José Rodrigues representando uma “anja” tinha sido furtada. Ou, se quisermos ser rigorosos, o bronze que constituía a escultura foi roubado, cortado in situ por uma rebarbadora de metal e retirado do local, em total impunidade. A Associação de Amigos da Praça do Anjo (AAPA) nasce deste drama. Criada por CC+ÂFS, a Associação levou a cabo as seguintes ações no espaço da Praça do Anjo, aliás Praça de Lisboa, aliás “Clérigos Shopping”: uma visita guiada às ruínas, cujo acesso era restrito, em 2007; a colocação e inauguração de uma placa de granito polido e letras douradas em memória d’”Anja” desaparecida, em 2008; e um jantar- convívio no único espaço útil sobrevivente ao abandono e à ruína, o parque de estacionamento subterrâneo, em 2011.
A lápide descerrada em 2008, colocada, furtivamente, numa noite de fevereiro, permaneceu no local até 2013, altura em que começaram as obras de reconversão. Deste modo, a placa seguiu o destino da “Anja” e desapareceu. A cidade, agora fiel da panaceia turística, ia mudando ao mesmo tempo que a Praça do Anjo. O velho mercado do Anjo deu lugar a um espaço comercial de luxo e propriedade privada. Um espaço transplantado à semelhança das oliveiras que o decoram.
Em maio de 2015, a AAPA voltou ao local para descerrar uma nova lápide. Mas a cidade mudou. Durante a colagem os membros da AAPA foram interpelados pelos seguranças privados, assalariados da empresa detentora dos direitos do espaço, que, em total impunidade, decretaram a apreensão da placa. Depois de chamada ao local, a PSP identificou ambas as partes e procedeu ao registo dos autos e apreensão do material. A saber: uma lápide de mármore com poema de Rilke inscrito e uma pistola de silicone laranja, material impróprio para fixar mármore. CC+ÂFS e J.L.T., escoltados até à esquadra do Infante, serão futuramente chamados a prestar declarações, acusados de vandalismo e atentado à propriedade privada.
O Porto mudou? O centro da cidade continua em grande medida deserto de habitantes. Os espaços domésticos dos cidadãos, que sempre viveram no centro, continuam miseráveis. Todas as grandes reconstruções destinam-se à indústria hoteleira. O povo é cliente, ou não é. Em cada esquina, um hotel. Em cada esquina, dois seguranças. O Porto mudou.
“Se eu gritar, quem poderá ouvir-me,
nas hierarquias das ?
E, se até alguma de súbito me levasse para junto do seu coração:
eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível (…)”
associação de amigos da praça dx anjx, porto, MMXV