“O recurso à fotografia e ao vídeo, sob a forma de documento, à escultura e ao desenho, servem os propósitos conceptuais e performativos do trabalho de Carla Cruz, antes de serem por si mesmos uma forma ou um estilo. O confronto com diversos públicos, especializados ou comuns, participativos ou involuntários, e com instituições de poder, cultural ou outros interesses sociais, são as complexidades que fazem fluir o seu trabalho. Esta acção não poderia deixar de fora a questão de género, já que de uma artista mulher se trata. A afirmação pode parecer redutora mas, antes pelo contrário, é fundamental para a construção do corpo central do trabalho da artista, bem como do seu próprio corpo. A demarcação da sua identidade sexual está em clara negociação ofensiva com a desconstrução da identidade sexual instituída. Em projectos anteriores em que se veste de homem, Masculinidade (2003), ou de mulher feminina, Transvestite/feminine (2002), ou em Could you do for me with your hands…? (2001-2), a artista destabiliza as crenças sobre o estereótipo de género: o que é ser mulher? O que é ser homem? E o que acontece entre eles? Sendo a construção da identidade de género uma questão social e histórica e menos biológica ou física, existem inúmeras possibilidades desejáveis que não se reduzem apenas a esta dicotomia. Para Torres Vedras a artista propõe Homoludens/Homofóbico (2007), um painel luminoso que intervém com os transeuntes. Esta tosca iluminação de festividades rurais alterna entre as figuras de uma mulher e de um homem. É no breve momento de passagem entre um e o outro que somos questionados, pois não só o homem se transforma em mulher, mas também a mulher se transforma em homem. É precisamente neste dispositivo que depreendemos que o poder não só tem que ser conquistado por aqueles que não o têm, assim como tem que ser desprendido por aqueles que o possuem. O hino Y.M.C.A (1978) dos Village People intromete-se despercebidamente no reportório natural de uma banda filarmónica, transgredindo a norma heterocêntica implantada e obrigando à promoção da homossexualidade. Esta dupla acção promove o conforto do reconhecimento de uns e força a saída do armário ao preconceito e à homofobia de outros, revelando que, independentemente daquilo que se publicite, ainda existem intolerantes secretas bolsas de resistência a uma sociedade mais justa e igualitária. O documento/Vídeo Arruada (2007) concebido pela Carla Cruz com a colaboração da Banda da Juventude Musical Ponterrolense foi o modo encontrado para mostrar este acontecimento, sem que com isso perca a sua forma interventiva.”
Hugo Dinis
“… Nota Final
Claramente, procurou-se debater a masculinidade, sendo que a sua definição é da responsabilidade de cada um, na medida em que é discutida entre todos, ou pelo menos, entre aqueles que quiserem participar. A dispersão dos espaço expositivos e a desmaterialização de um discurso expositivo narrativo e contínuo, e a discussão escrita ou oral, que à volta da exposição se cria, tendem a multiplicar os pontos de vista sobre a masculinidade. Desedifica-se o homem no sentido de o retirar dos seus estereótipos, das suas fundações históricas, sociais e políticas. Sem existir a intenção de idealizar o homem ideal, nem da eugenia, nem de afirmar que todos os homens podem ser perfeitos, o que aqui se possibilitou foi a aparição do homem imperfeito como o único possível. O espelho onde nos revemos e vemos os outros é estilhaçado. E é nos cacos humilhados e desmoralizados que se reflectem no chão que se edifica o outro homem. O homem pode, e deverá, ser o que quiser ser e aquilo que para si ansiou.” Hugo Dinis (nota final do texto da exposição)